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Confesso que bebi com Jaguar na noite carioca e ele nem viu

Por Enio Lins 28/08/2025

JAGUAR FOI o mais irreverente dos cartunistas brasileiros. Se foi aos 93 anos, em 24 de agosto. Minimalista, optou por um traço descuidado, como desenhasse tomando umas e outras. Bebi uns chopes ao lado dele, um ídolo na nossa profissão, uma só vez.

CHICO E PAULO CARUSO
eram os dois únicos ídolos com os quais tinha intimidade. Paulo se foi, prematuramente, em 2023. Irmãos univitelinos, gêmeos em talento e generosidade. Nas raras idas ao Rio de Janeiro, ligava para Chico (Paulo morava em São Paulo) e me candidatava a um giro pela cidade. Numa dessas, ele acrescentou: “Vamos sair com o Jaguar!”. Quase não acreditei na sorte.

CHEGANDO AO RESTAURANTE 
indicado, o maitre me abriu um sorriso: “É o senhor Enio?” (fiquei surpreso com minha popularidade na noite carioca). Ele prosseguiu: “O Chico e o Jaguar resolveram ir para outro lugar e pediram que o senhor fosse imediatamente para lá. É uma boate!”. E acrescentou, com uma cara maliciosa tal qual a do Sig, o personagem camundongo do Jaguar: “Vá. O senhor vai gostar!”. Fui.

ERA UMA BOATE DE STRIP-TEASE
. No breu, cacei a mesa certa. Enfim, distingui o sorriso do Chico. Estavam acompanhados das esposas, Eliana e Célia. Chico falou para o Jaguar: “Esse aqui é nosso amigo chargista de Alagoas, de quem lhe falei!”. Nosso ídolo, entretanto, dormia como um anjo. Sua esposa o sacudiu pelos ombros: “Acorde para falar com o rapaz!”. Ele, sono solto, esboçou um sorriso sem abrir os olhos e riu baixinho: “Ri ri ri...”. Explicaram a mudança de endereço: “Jaguar quis porque quis vir para cá, para assistir ao show do Edy Star”. Chico me resumiu: “Edy é ator, dançarino, escritor, teve muito apoio do Pasquim; exilou-se na Espanha, fez sucesso lá, onde mora até hoje. Está no Rio por uns dias e vai fazer essa apresentação”.

EDY STAR
surgiu no palco sob uma pele falsa, de material plástico, numa performance que satirizava o padrão de beleza feminina exigido pelo mercado. Cantou e dançou, num strip-tease cômico, crítico (hoje seria considerado “politicamente incorreto”). Enquanto isso, Jaguar era cutucado pela esposa: “O Edy está no palco! Acorde!” e ele, olhos fechados, ponta do queixo depositada no peito: “Ri ri ri ...”. Findo o espetáculo, no corredor da saída, Edy Star esperava o velho amigo. Emocionado, abraçou Jaguar, chorou, agradeceu. Jaguar, olhos cerrados, só “Ri ri ri”. Chico me apresentou ao Edy. Enquanto batíamos papo os quatro, Jaguar disparou um gemido de dor: “Uiiii...!”. Eliana perguntou, baixinho: “Que houve?” e Célia respondeu: “Nada...”.

NO CARRO, OS CINCO 
apertados, Eliana perguntou novamente o motivo do Jaguar gritar, e Célia explicou: “Dei um beliscão nele! Ele nos faz ir para um local daqueles, e não assiste ao show, dormindo. Na saída, o artista o abraça, e ele nem acorda. Depois, quando o Edy estava conversando com vocês, ele me pergunta, sem nem abrir os olhos: ‘Quem é essa bicha que me agarrou?’. Aí dei um beliscão daqueles!”. Com a cabeça recostada no ombro da esposa, Jaguar ressonava: “Ri ri ri”.

ANOS DEPOIS,
peguei com Chico o contato do Jaguar para tentar publicar um artigo dele sobre os bares cariocas na revista da CACB (Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil), então presidida por Luiz Otávio Gomes. Liguei. Ele atendeu e informei que era fã, relatei o acontecido naquela noite. Surpreso, ele exclamou: “Não é possível! Até hoje tenho negado isso ser verdade, pois achava que era uma invenção da turma para brincar comigo!”. Conversamos um bocado. O artigo foi editado como orientação para participantes de um evento internacional realizado no Rio. Não tive outra oportunidade de falar com ele. Caro Jaguar, se pudesse, lhe diria que me arrependo muito de não ter tido o atrevimento de, pelo menos, lhe ligar mais vezes; e acho que você responderia: Ri ri ri...

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