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Quinta-feira do fogaréu na antiga capital das Alagoas

Por Enio Lins 28/03/2024

Hoje, no Centro Histórico de Marechal Deodoro, a partir das 23 horas, um ato cultural/religioso raro, quase esquecido: a Procissão do Fogaréu. Como nos séculos passados, passeará pelas ruas da velha cidade sob o breu (a iluminação pública é desligada), encenando a narração católica para a busca e prisão de Jesus.

É uma das mais belas celebrações em Alagoas, cujo esplendor se compara (ou excede) às procissões de Bom Jesus dos Navegantes (Penedo e Pão de Açúcar, no segundo domingo do ano) e ao tributo a Iemanjá (Maceió, 8 de dezembro). Em cada uma, cenas emocionantes, produções e crenças distintas.

CULTURA E TURISMO

Todo e qualquer ritual de fé aberto ao público é projetado (desde tempos imemoriais) para impressionar, em primeiro lugar, quem não é crente daquela religião. Quanto mais apoteótico, quanto mais cenográfico seja o ato, toca mais corações e mentes até então distantes. E, em segundo lugar, mobiliza quem já é fiel.

Nesse aspecto essencial, como eventos abertos a todas as demais crenças e descrenças, cada uma dessas celebrações religiosas deveria ser entendida e apoiada como produto que ultrapassa (e muito) os limites das fés e que possuem enorme potencial de atração, laica, para a cultura e o turismo.

TEATRO AO AR LIVRE

É a Procissão do Fogaréu um grandioso espetáculo de teatro ao ar livre, com enorme impacto visual e musical. Criado na península ibérica durante a alta Idade Média, traz consigo inegáveis traços antijudaizantes e inquisicionais, ato público com cara de ter se originado no temível “auto de fé” (quando os acusados por heresia tinham de desfilar pelas ruas antes de receberem suas sentenças) – máculas providencialmente pasteurizadas, olvidadas, há muito tempo.

Em sua versão cenográfica, tem como enredo a procura pelo nazareno, para prendê-lo. Os archotes lembram que, no ano 33, a iluminação urbana era precária ou inexistente na Palestina. O cenário são as ruas de qualquer cidade, no papel das ruas de Jerusalém. Os atores, devotos locais, desempenham dois papéis básicos, em grupos: 1) membros da guarda romana; 2) integrantes do sinédrio/população judaica e/ou hereges com contas a expiar. Sem contar a banda marcial.

PESO DO PECADO

Na Procissão do Fogaréu contemporânea o destaque é o “farricoco”, personagem originalmente desempenhado por homens assumidos como pecadores, e dispostos a fazer sua penitência caminhando com os pés descalços (sobre ásperas ruas), protegidos por uma vestimenta que esconde a identidade de cada um.

Na versão deodorense, os farricocos usam preto fechado, com gorros cônicos pontudos (alguns em púrpura), e longas vestes. No passado da Santa Inquisição, representavam o povo hebreu, os “fariseus”, acusados pelos cristãos como responsáveis pelo sofrimento e morte de Jesus – como se ele próprio não fosse judeu.

CONVIDANDO

Caso possa estar nesta quinta-feira nas proximidades da povoação que foi a primeira capital de Alagoas, às 23 horas, achegue-se ao Largo Conventual de Santa Maria Madalena. Participará de um grande espetáculo, seguindo o ato de fé, a pé. Mesmo com pecados a saldar, descalçar-se é opcional para o público (e quem sabe, até farricocos modernos podem se achar dispensados disso).

Venha com disposição para andar. Use calçado confortável, traga proteção para a possível chuva e algo para beber, e siga o fogaréu. “Penitenziagite!” – como diria Salvatore, personagem da seita herege Dolcinitas, criado por Umberto Eco no magistral “O Nome da Rosa”, misturando várias línguas para expressar “Penitencia-te!”.

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